Segundo o diagnóstico dos reformadores do século XVI, o
problema central do ser humano era a justiça própria. Foi a partir dessa
conclusão, que eles estabeleceram a “Justificação pela fé” como a bandeira
principal do cristianismo protestante.
Se fosse possível ao homem salvar-se mediante boas obras,
isso retroalimentaria seu orgulho, cativando-o para sempre em um ciclo do
pecado. Somente a graça seria capaz de romper com este ciclo, pois a mesma
seria um golpe desferido por Deus no orgulho humano, salvando-o de si mesmo.
Embora concorde com as doutrinas defendidas pelo
protestantismo histórico, acredito que houve um erro de diagnóstico. O problema
humano não repousa sobre a justiça própria. Na verdade, a justiça própria
equivale a um remédio errado que foi ministrado em cima de um sintoma.
Sabemos, pelas Escrituras, que o problema humano se chama
“pecado”. Ainda que o conceito seja exclusivo das religiões originárias em
Abraão (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), todas as outras religiões concordam
que alguma coisa esteja errada com o ser humano. E todas elas, exceto o
cristianismo bíblico, acreditam que o remédio para isso é a justiça própria.
Para superar sua alienação espiritual, o homem teria que praticar boas obras,
que expressassem seu senso de justiça e retidão.
De acordo com as Escrituras, nossas boas obras são como
trapos de imundícia (Is.64:4). Era assim que se chamava o pano usado pelas
mulheres para conter o fluxo menstrual. Em outras palavras, nossas boas obras
são uma tentativa inútil de conter nossa hemorragia espiritual. E por melhores
que sejam, estão sempre manchadas pelo nosso pecado. Por isso, a salvação não
poderia ser pelas obras, pois elas estariam manchadas pelo nosso orgulho e
vaidade.
Quando os reformadores se aperceberam disso, resolveram
combater a justiça própria, mostrando aos homens que a única maneira de serem
salvos é confiar na justiça divina, demonstrada na Cruz, onde Cristo recebeu
nossos pecados e suas conseqüências, e nos imputou Sua justiça e santidade. Aos
olhos de Deus, tornamo-nos justos, a despeito de nossas obras, quando
reconhecemos nossa bancarrota, e nos fiamos na justiça de Seu Filho Jesus. É
pela fé, e tão somente por ela, que Sua justiça é computada em nossa conta.
Até aí, tudo bem. Não há o que rebater. Basta ler Romanos,
Gálatas, e toda a Bíblia, para dar-se conta de que a justificação pela fé é uma
doutrina imprescindível e inegociável.
A Justificação pela Fé estanca a hemorragia provocada pelo
pecado, mas não nos cura de nossa anemia.
É importante combater a justiça própria, pois ela nada mais
é do que um placebo, um “me-engana-que-eu-gosto”. É importante estancar a
hemorragia, em vez de tentar contê-la com boas obras. Mas acima de tudo, é
importante restaurar a saúde espiritual do ser humano. E pra isso, tem-se que
combater o pecado. E o que seria o “pecado”? Ora, o termo “pecado” significa
“errar o alvo”. Mas acerca de quê alvo estamos falando? Qual o alvo original
estabelecido por Deus à criatura humana?
Essa resposta pode ser encontrada nos dois principais
mandamentos de Deus. Eles se constituem no alvo de nossa existência.
“...Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda
a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o primeiro e grande mandamento.
O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes
dois mandamentos depende toda a lei e os profetas” (Mt.22:37-40).
Eis o alvo! Fomos feitos para o amor. E o alvo deste amor é
Deus, e, por conseguinte, nossos semelhantes. Porém, ao cair, o homem
desvirtuou o alvo, e introduziu um novo alvo: seu próprio eu.
Quem disse que Deus ordenou que o homem amasse a si mesmo? O
amor próprio é a essência do pecado. É o próprio pecado. Deus jamais nos
ordenaria que pecássemos. Ao dizer que deveríamos amar a nosso próximo como a
nós mesmos, ele não está endossando o amor próprio, mas condenando-o. Com
efeito, Ele disse: O amor que vocês nutrem por si mesmos, devem dedicar aos
outros em vez de a si. O “amor próprio” aqui entra apenas como um referencial,
e não como algo louvável e que deva ser estimulado.
As religiões aparam os ramos, e eles continuam a frutificar.
O golpe desferido pelos reformadores atingiu o tronco da árvore, e não a sua
raiz. Urge desferirmos um golpe na raiz da árvore, o amor próprio.
Todos os pecados têm no amor próprio seu ponto de partida.
Por exemplo: a mentira. Geralmente, a mentira visa a
autopromoção ou a autopreservação. O indivíduo mente para promover-se,
exagerando em seus dotes, enfatizando suas proezas. Ou mente para proteger-se.
Portanto, a mentira é filha do amor próprio.
E o adultério? Quem se entrega a uma relação adúltera busca
por autossatisfação, sem importar com a dor que causará ao seu cônjuge e
filhos.
Autopromoção, autopreservação e autossatisfação são os
principais alvos estabelecidos pelo amor próprio.
Há ainda a filha caçula do amor próprio, a autoestima, um
nome mais sofisticado para o velho orgulho. E há ainda o sobrinho do amor
próprio, a autoajuda, tão em voga em nossos dias. Em vez de buscar ajuda do
alto, o homem pós-moderno prefere acreditar em seu próprio potencial para
resolver todos os seus problemas.
O antídoto para a justiça própria é a graça. Através dela a
justiça humana é desbancada, e em seu lugar é entronizada a justiça de Deus. E
qual seria o antídoto para a o amor próprio? O antídoto para o amor próprio é a
cruz.
Os reformadores protestantes enfatizaram a morte de Jesus em
nosso lugar, mas se esqueceram de dar igual ênfase à nossa co-crucificação.
Dizer que Jesus morreu por nós é a mais pura verdade, mas não expressa toda a
verdade. Ele morreu por nós, mas nós também fomos crucificados com Ele. O
apóstolo Paulo conjuga com maestria essas duas verdades:
“Pois o amor de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um
morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que
vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressurgiu”
(2 Coríntios 5:14-15).
O amor revelado na Cruz deve constranger-nos a ponto de não
mais vivermos para nós. A Cruz é um golpe fatal no amor próprio.
Paulo compreendeu isso perfeitamente: “Estou crucificado com
Cristo, e já não vivo, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo na carne,
vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim”
(Gl.2:20).
Onde foi parar a autoestima de Jesus? Como Ele pôde
entregar-Se de tal maneira por gente que sequer merecia?
Jesus estabeleceu um novo referencial de amor. Antes da
Cruz, a referência mais eloquente que o homem tinha era o amor próprio. Mas
agora, Jesus o desbancou, entregando-Se por nós sem reservas. E é este o tipo
de amor que devemos dispensar aos nossos semelhantes.
Pela Cruz, somos salvos não apenas da condenação do inferno,
ou da ira divina, mas somos salvos de nós mesmos.
Pelas pisaduras de Cristo, fomos curados de nossa hemorragia
e de nossa anemia espiritual. Agora somos instados a amar a Deus sobre todas as
coisas e aos nossos semelhantes da maneira como Ele nos amou, e não como a nós
mesmos.
Tudo isso sugere que o que a igreja cristã necessita não é
de mais uma reforma, nos moldes do século XVI, mas de uma revolução de amor,
onde o amor próprio seja deposto, e em seu lugar seja entronizado o Novo
Mandamento de Jesus.
Por Hermes C. Fernandes